Palavras Negras: Miró da Muribeca, o poeta das ruas
- Elizabeth Souza
- 16 de out. de 2019
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de jan. de 2021

É tarde de quinta-feira, daquelas indecisas entre sol e chuva, mas as nuvens que se agrupavam já anunciavam o que estava por vir. Atravesso a ponte Maurício de Nassau, cortando o Rio Capibaribe, e sinto os primeiros pingos. Acelero o passo e chego ao Recife Antigo. Com alguns minutos de atraso, me dirijo ao local que havia combinado com o poeta. A chuva cessa. Ao chegar, me deparo com a notícia de que ele não está porque tinha ido fazer outra entrevista. Não me surpreendo, são muitas as pessoas que querem ver e ouvir esse homem. Ligo para ele e combinamos outro ponto de encontro. Em seguida, parto para a rua do Bom Jesus, e antes mesmo de entrar no estabelecimento que havíamos marcado, o vejo de longe, é quando minha ficha cai: “hoje, será um daqueles dias que entrará pra minha história de jornalista. Vou entrevistar Miró da Muribeca”. Quase uma hora de conversa, e, querida/o leitora/o, eu saí extasiada, espero que você também.
Sento à mesa, monto o equipamento com mais uma amiga que me acompanha, e logo Miró dá início à conversa. Bastante solícito e simpático, o bate-papo com o poeta foi altamente descontraído. Ele torna o ambiente tão confortável, que a sensação que tive era de que o conhecia há mais tempo. Batizado com o nome João Flávio Cordeiro da Silva, Miró da Muribeca é um nome que surge na época em que ainda jogava bola. Por ser bom no esporte, chegou a ser comparado com o atleta Mirobaldo, ex-jogador do Santa Cruz Futebol Clube, de onde vem o nome Miró. Muribeca é referente ao bairro em que morava, localizado em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife. O nome pegou, e, hoje em dia, é conhecido em todo o país como Miró da Muribeca.
Com mais de dez livros lançados, Miró escreve sobre a “injustiça humana, o amor e sobre o retrato do ser humano na terra no quintal de Deus”, afirma. Detalhes que tornam tão especiais suas crônicas/poesias. Com uma linguagem simples e arrebatadora, tod@s compreendem o que o poeta recifense escreve. “Minha crônica o gari entende, a doméstica entende, o arquiteto entende, não precisa ler minha poesia e ir para o [dicionário] Aurélio definir. Qualquer pessoa entende”, conta. Para ele, a facilidade que possui em dar vida ao inobservável do cotidiano por meio de suas palavras é um dom, que acredita ter vindo de forças espirituais, já que sua mãe era Espírita Kardecista.
“Talvez é também o que me protege para até hoje eu estar vivo com 59 anos, como negro, da periferia, vivendo de poesia no Brasil”, alega.
Apesar de todas as agruras que permeiam a vida de escritores/as no Brasil, Miró da Muribeca se diz grato por viver da poesia há quase quatro décadas, algo realmente surpreendente em um país onde as pessoas leem pouco. E mais surpreendente ainda é a forma como teve contato pela primeira vez com a poesia. Aos 16 anos, o amigo e artista Maurício Silva o apresentou o poema “ Farda verde verde verde verde / Praça verde verde verde verde / e o coração bate continência a toda mulher que passa”. Ao concluir a leitura, Maurício pergunta ao poeta recifense se ele havia compreendido aquela poesia, e Miró responde que sim, com a sensação de que também era capaz de produzir aquilo. “Foi a primeira vez que vi uma poesia e pensei: ‘posso fazer isso também’. Ela nasceu em mim com esse som”, diz.
Esse simples episódio desencadeou em um intenso contato com as palavras, que o tornou tão conhecido e homenageado, como na Bienal do Livro de Pernambuco, em 2015; e este ano pela Balada Literária, em São Paulo. A poesia de Miró somada à sua linguagem corporal ganha uma conotação esplendorosa, que resulta em interpretações que deixam qualquer um/a extasiado/a. “Eu não sou só o meu livro, eu sou minha interpretação, é o meu mergulho sobre o cotidiano. Já aconteceu de um cara em São Paulo comprar um livro meu e dizer, ‘olha, eu nunca li um livro, mas o seu eu quero porque minha mulher vai ouvir isso hoje, quando eu chegar lá’. Então, não é só minha poesia, é como eu digo minha poesia”, explica.
O processo de criação de Miró da Muribeca é feito por meio de um imediatismo que não o permite deixar para amanhã o que ele sente necessidade de escrever agora. “O mais legal que eu gosto em mim é que eu no meu processo de criação, eu não deixo para amanhã, se eu deixar me dá uma “tpm literária”, eu tenho que escrever agora o que eu sinto.”, diz. Para explicar como ocorre esse processo, Miró recita um de seus poemas: “O gari vai varrendo o mundo/ e nada fica limpo/ a sujeira está no coração do homem”, e conta como os acontecimentos são absorvidos por seu olhar de poeta. “Esse trecho diz respeito a um episódio que eu vi, em que o gari passou arrastando o carro do lixo e um babaca passou atrás dele com um cachorro-quente dentro de um copo e jogou nas costas do gari. Eu sou muito a coisa da urgência poética, da espiritualidade dentro da ótica”, aponta.

Um dos escritores mais vendidos pela Cepe Editora, colocação que ganhou por meio do livro “Miró até agora”, que reúne poemas das suas 11 primeiras obras, o poeta já tem um novo projeto em andamento: o seu primeiro livro infantil. Produzido em parceria com o editor Wellington de Melo, a obra abordará questionamentos que o escritor Miró fazia à sua mãe sobre a ausência do seu pai. “O livro fala de uma criança que fica perguntando à mãe pelo seu pai, que foi o que aconteceu comigo durante a minha infância, perguntando coisas que parecem banais mas são filosóficas”, conta.
Nesses quase 40 anos de trabalho, Miró se diz grato e feliz por se sentir capaz aos 59 anos, por ser tão querido e por ter a liberdade de trabalhar para ele mesmo, o que ele diz ser uma experiência fantástica. Encontrar o poeta é ter a certeza que ele está com algum livro, o que facilita as vendas e o faz tão conhecido.
“A minha arma é minha poesia, minha única fonte de renda. Eu já vendi cinco livros cruzando uma ponte, nenhum poeta no Brasil vendeu cinco livros cruzando uma ponte. A alegria que eu sinto hoje é de ser um poeta conhecido nas ruas, porque minha poesia é da rua”, conclui.
E a nós, Miró, suas/seus admiradoras/admiradores, fica a sensação de gratidão por sua poesia que nos transforma e nos impulsiona a reagir diante as injustiças sociais, porque como você mesmo disse: “tem hora que a gente tem que vomitar no sistema, dizer a eles que estamos vivos”.
Obrigada!
Confira o vídeo da entrevista:
Essa matéria faz parte do especial Palavras Negras, do site Lugar Afro, que busca dar visibilidade a escritores/as negros/as e os trabalhos que desenvolvem. Confira outras entrevistas realizadas com @s escritores paraiban@s Débora Gil Pantaleão, Thiago Costa e Roberto Silva.
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